segunda-feira, janeiro 28, 2008

75 vezes!?!?!?!?

.. foi precisamente este o número de vezes que uma doente tocou à campainha durante um turno de 8 Horas.... queixas álgicas? Não! dificuldades respiratórias? Não! desconforto pré-cordial? Não! Polaquiúria? Não! Necessidade de evacuar sem qualquer êxito? Também não? Comichão no hallux? Não, também não? Roupa enrugada/enrolada debaixo das costas? Não! Tentativa desesperada de chamar a atenção semqualquer queixa pertinente? Não, também não! Será que o facto de a doente ter medicação no domicilio que os Exmos Sr.s Doutores esqueceram de manter teve influência? não faço a mínima ideia!!!!!
Foi preciso que as doente passassem duas noites, aliás 48H em claro e que uma delas descompensasse? Foi preciso que esta noite tivesse sido tão horrível ao ponto de eu temer pela saúde desta mesma doente, pois cheguei a imaginar que uma outra doente, qualquer outra se levantasse e tentasse sufocá-la com a almofada... a sério que tive medo!! Ninguém imagina o que é o pesadelo real de estar a satisfazer algumas necessidade humanas básicas a esta doente, e nem dois minutos depois ela tocar novamente à campainha para exigir exactamente o oposto do que tinha sido feito a seu pedido... Ninguém imagina o que é estar desde as 4H da manhã até às 8h com esta mulher sempre a berrar, a chamar, por queixas inespecíficas que não chegam a ser queixas, só por dois motivos: por tudo e por nada.. e o tempo que demoramos a chegar à enfermaria, uma vez que temos mais doente para além daquela que também necessitam de cuidados (pois somos apenas um/uma), ela esta constantemente a repetir o mesmo, a ponto das outras doentes desatarem aos berros com ela para se calar... ninguém sabe o que é ser imponente face a isto.. ninguém sabe o que é chegar ao estado de desespero, em que nem a medicação funciona com esta doente, medicação pedida já em último recurso a médico de banco... que para esta mulher não passou de água.... ninguém sabe o que é não perceber e não compreender e não saber já quais as alternativas aos olhares desesperados das outras doentes para as ajudar-mos... ninguém sabe a sensação de inutilidade que se sente face a isto, e face ao fracasso de nós mesmo para resolver esta situação.... e depois a sensação de ter falhado e de ter perdido a razão quando, nós mesmos já gritamos ao doente (com diminuição da acuidade auditiva) que é má e que não tem respeito nem por ela mesma nem pelos outros doentes.... e ela ainda se ri na nossa cara a dizer que não é... ninguém sabe o que isto é.. até passar por isso mesmo... mas penso que qualquer Enfermeiro ou Auxiliar já passou por isto....
E, se já passou deve saber o que é vir para casa e ter pesadelos com toda a situação, e acordar irritado, ansioso, inquieto, e passar o resto do dia com uma neura e a desejar mal a tudo e a todos, numa forma de projectar a sua impotência... acho que caminho para o Burnout a trote...
Esta doente morreu hoje.. às 13H... e terminaria o texto como o comecei, mas não adiantaria de nada... porque ee posicionei-a quantas vezes ela pediu, dei-lhe água tantas vezes quantas ela referiu sede, coloquei-lhe a arrastadeira tantas vezes quantas ela solicitou, dirigi-me a ela todas as vezes que ela tocou à campainha para pedir "absolutamente nada", nem sequer companhia.. e agora ela morreu assim, de um momento para o outro.. e eu prossigo com a minha vida e com a noite tatuada em mim, como a dor de um estalo, sem qualquer alívio, sem qualquer possibilidade de passar.. porque ela acabou por sossegar, e a minha consicência, e o meu eu?!

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